terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O aprendizado fetichista- Um conto dos tempos modernos


Um dos maiores atores que o cinema americano já teve é Jack Lemmon, extraordinário tanto em comédias como dramas. Em “O Sucesso a Qualquer Preço” (Glengarry Glen Ross/EUA/1992) de James Foley, baseado em peça de David Mamet temos um dos seus grandes desempenhos dramáticos, contracenando com o que ele mesmo reconheceu ser o melhor elenco de sua vida.

Numa firma de venda de imóveis o chefe Blake (Alec Baldwin) ameaça sem nenhuma cerimônia seus funcionários. O corretor que fizer melhores vendas ganhará um Cadillac dourado, o segundo lugar um conjunto de seis facas para churrasco, o terceiro o olho da rua. Shelley (Jack Lemmon), Ricky ( Al Pacino), Dave ( Ed Harris) e George (Alan Arkin) são os corretores que entram em competição acirrada, o que vai despertar neles as maiores torpezas, principalmente em Shelley que será capaz de um roubo, tão preocupado está com a perda do emprego por ter seriíssimos problemas de família.

Numa época de competitividade mais violenta ainda, com demissões em massa, não é preciso ter muita imaginação para imaginar quantas perversidades estão sendo praticadas por aí. Na “melhor das hipóteses” ouve-se falar em perda de direitos adquiridos para garantia de empregos, com empresários bastante assanhados para manter suas margens de lucros mesmo diante da medonha crise.

O conto a seguir baseado numa história vivida por mim tem obviamente as manhas da ficção e não pode ser encarado como totalmente autobiográfico. Posso dizer como Fellini que minto, mas sou sincero. Por outro prisma, tem fortes pontos de contacto com o que estamos vivendo e com o filme citado.
Nelson

O aprendizado fetichista

A gente passa os últimos anos todos sonhando com a formatura e quando ela se avizinha nos sentimos como um doente terminal, numa caixa de sombras, à espera do ultimo suspiro. Será que valeu a pena tanto esforço, concentração e estudo para digerir aquelas teorias econômicas todas que se atropelam diabolicamente, com um mínimo de consenso? A parte mais pragmática da economia (mais de acordo com essa mesquinha sociedade em que vivemos), sempre me repugnou um pouco. Nunca fui muito chegado a moedas, bancos, bolsa de valores, ações e outros bichos. Eu me amarrava mesmo (e ainda me amarro?) em estudar as diversas escolas da economia e porque não confessar agora (mesmo sem nenhum torturador por perto...) o pensamento de Marx, aquele cuja mãe sabiamente sentenciou (como minha família parece me cobrar agora) “em vez de se dedicar a estudar O Capital, deveria se dedicar é a ganhá-lo”. Sim, eu gostaria de ser difamado agora de marxista, comunista. Sentiria até certo regozijo. Seria um prêmio por tanta pestana queimada. Mas não seria verdade. Ainda faltam-me muitos estudos e uma vida prática que tenha com as idéias em mente um mínimo de coerência. Além do mais com tanta infâmia praticada em seu nome nem Marx seria hoje marxista, quanto mais eu, um pobre-diabo que depois de quatro anos de estudo, mendigo a alguma instituição ou empresa que se digne conceder-me um emprego. O revolucionário aqui que “não tem parentes importantes e veio do interior”, está com fome e anseia pela “sopa reacionária” conforme profetizou o Millôr.

Sinto-me ridículo ao debruçar-me neste computador para tentar elaborar o meu curriculum-vitae e enviá-lo a esta kafkiana empresa que anuncia sorrateira, num jornal o seguinte:

“Grupo Empresarial de Grande Porte procura:

ASSISTENTE DE PLANEJAMENTO

Recém-formados em Economia para trabalho em análise e interpretação de dados estatísticos e de mercado, planejamento estratégico, análise financeira e montagem de modelos matemáticos de simulação.

Fornecemos treinamento, perspectiva de carreira, bom ambiente profissional. Só não aceitamos medíocres.

Os candidatos devem enviar email com curriculum vitae e pretensões salariais para guaiba@uol.com.”

Não! Eu não posso enviar um email assim no escuro! Ou devo? Estou sabendo do que se trata. Um colega meu já mandou currículo para esse email. Foi chamado e reprovado nos testes psicotécnicos. Este grupo empresarial de grande porte trata-se de uma multinacional de celulose: uma exportadora.

Este currículo já está quase pronto, só falta incluir agora aquele curso de pós-graduação que fiz, paralelamente à faculdade, na famosa Academia Brasileira de Números.

Sem saber direito o que me aguardava o próximo ano sondei a possibilidade de ganhar a bolsa da prestigiada academia e ir levando a vida como “mão de obra hibernante”, fazendo pós enquanto não arrumasse um trabalho. Mas a minha passagem por aquela instituição deu-se como um cometa que singra o espaço e desaparece dos nossos olhos sem que as nossas retinas detenham uma imagem sequer.

No primeiro dia de aula senti-me tão à vontade quanto um índio numa reunião maçônica. A pose de sabichões, de rapazotes-prodígios daqueles meus colegas incomodava-me bastante. Como estava num território estranho, me assumi logo como ovelha-negra e deixei o barco correr. Não estava mais no reino das idéias e sim no das fórmulas milagrosas. A filosofia era curta e simples. “A economia é um corpo orgânico e tende sempre ao equilíbrio, movida por forças de mercado que devem atuar livremente”. Ninguém fazia a menor objeção e eu não sentia ambiente favorável para “levantar a lebre”. Assim com base neste dogma o jovem professor, um enfant-terrible que antes da curva dos trinta anos já era PHD pela famosíssima escola monetarista de Chicago, a qual legou à humanidade as mais brilhantes criaturas (depois de Hitler é claro!...), procurava então estabelecer modelos abstratos formulados em termos matemáticos para explicar “como os numerosos agentes que compõem a economia tomam decisões e como estas decisões são coerentes entre si”...

E eu que pensei que soubesse alguma coisa de matemática vi todos os meus pilares ruírem quando o mestre num virtuosismo ininterrupto desfilava matrizes e mais matrizes de tudo quanto se possa imaginar. Todos permaneciam atenciosíssimos, os olhos vidrados. O professor perguntava se todos estavam acompanhando, ninguém manifestava a menor dúvida e eu, recolhido à minha insignificância com medo de ser descoberto como um medíocre enrustido, mirei-me no exemplo daqueles atenienses, os Sócrates e Platões redivivos, fazendo cara de quem estava aprendendo tudo.

Alegria! Num gesto ousado travei um diálogo com um colega num intervalo e descobri que eu não era o único que não estava entendendo patavinas daquelas elucubrações todas. Salve! Não iria mais amargar solitário a minha inferioridade. Passamos então a estudar juntos. Perdemos um sábado inteiro tentando desvendar um exercício proposto (não sabíamos nem o que mestre queria que provássemos) e descobrimos, estupefatos, que o problema já estava resolvido no livro texto, mas não o tínhamos achado porque estava tão dissimulado quanto um par de lentes de contato num imenso capinzal.

O mestre repisava que repisava as suas ferramentas prediletas: “Equações de Euler e Condições de Transversalidade”. Esses eram os conceitos básicos e não havia aula em que esse instrumental não fosse utilizado para demonstrar as mais mirabolantes relações, as quais convergiam milagrosamente para o tão sonhado “paraíso aqui e agora”, o magnânimo, transcendental, “estado ótimo de Pareto”, o apogeu com que toda sociedade de consumo sonha: “aquele estado em que dentro das limitações impostas, pelas condições de consumo e produção de cada um e pelos recursos totais da economia, não se pode satisfazer melhor as preferências de qualquer consumidor sem piorar aquelas de qualquer outro”.

Estava acabado o curso com fecho de ouro! Chegávamos todos ao final neste estado de Pareto, nossas ansiedades e avidez pelo consumo de economês tinham sido saciadas. Andávamos com a cabeça nas nuvens, leves como um pássaro, orgulhosos de tanta cultura assimilada e do dever cumprido. Nirvana total!

Ledo engano! Nós que pensávamos que a avaliação seria feita por uma série de exercícios já entregues, recebemos uma ducha de água fria: o professor marcava de supetão um exame oral para a semana seguinte!

Espanto! Emoção! Suspense! E se seja o que Deus quiser!

Na manhã fatídica o mestre chamou o infeliz que tinha o nome iniciado pela letra A e pediu-lhe que fosse ao quadro:

“Escreva as equações de Euler e as Condições de Transversalidade”.

A galera respirava com cautela e acompanhava o Armandinho a escrever, sereno, imperturbável, as relações que tinham o status de revelações de um oráculo moderno.

O mestre contemplou a lousa repleta de alfas, betas, gamas, pis, deltas, psis, ômegas e exclamou, também imperturbável, sem o menor esgar de emoções:

- Não é nada disso. O próximo! Bento por favor!

E aí veio uma sucessão de vergonhas expostas nua e cruamente perante todos. Pequenos reis a desfilarem a sua nudez sob os olhares perplexos e cúmplices dos demais. Na minha vez relaxei: nem tudo estava perdido....Ainda podia perder a vergonha... Ninguém sabia aquilo que consistia no ABC do curso, falávamos inglês pela sala de aula e corredores, mas não sabíamos conjugar o verbo To Be...


Ser e Não Ser, eis a questão...

A rigor, estaríamos todos reprovados, mas o mestre era muito bondoso, não deixaria os seus discípulos desamparados. Fez então as perguntas mais elementares possíveis à sua seleta platéia. Perguntou ao colega com quem eu compartilhava as perplexidades:

"Se eu elevar “e” ao número ao qual eu devo elevar e para obter “x” o que obtenho”?

Não! Não perguntou exatamente isso, mas algo parecido, uma variante mais sofisticada da “cor do cavalo branco de Napoleão”. Eu, calhorda, torcia no meu íntimo para que meu colega errasse e o professor passasse a pergunta pra mim, pois esta eu sabia!...E dito e feito... Safei-me! Ao fim, passamos todos nós, como uma ação entre amigos, com o conceito mínimo de aprovação! E o conceito do curso também foi salvo!

Agora é só incluir no meu curriculum vitae esse fabuloso curso de Economia Matemática e todas as portas me serão abertas! Mesmo que tenha sido um curso de aproveitamento tendendo a zero...

Como alguém pode passar quatro meses dando aula para uma turma e não se preocupar se está sendo bem entendido? As suas interpelações esporádicas não tinham a menor força, eram simplesmente interrupções burocráticas, sem vida, sem sinceridade, destinadas simplesmente a fazer com que ele tomasse fôlego para prosseguir com o seu maníaco exibicionismo. “Olhem só quão gênio da matemática eu sou” – nos insinuava a todo momento.

E como pudemos ser cúmplices desta farsa durante tanto tempo? Como pudemos representar tão bem assim? Onde arranjamos essa coragem, essa deslavada cara-de-pau? Como foi que aprendemos a arte do silêncio conveniente com tanta eficiência assim?

Do professor podemos compreender o porquê dos seus gestos: como poderia ler mais fundo os nosso olhos, desvendar as nossas angústias dissimuladas, entender as nossas almas retorcidas se aprendeu simplesmente a encarar os seres humanos como indivíduos avessos ao risco ou amantes do risco? Para ele o homem é uma utopia já digna da rabeira da História, o que conta a agora são os homens-hora, as forças-tarefas, prontas a se perderem a qualquer hora, a qualquer momento (basta um sinal) numa disputa mesquinha por um cargo, uma vaga qualquer, uma guerra contra um inimigo que lhes é imposto....

Ele sim, o compreendemos (ainda que não o justifiquemos), mas e a nós, como compreender a nossa capitulação precoce aos imperativos da lei da selva (ofertas, procuras e desencontros)?

O que seria da Física, da Química, se descobríssemos hoje que elétrons, prótons, nêutrons não existem, que o átomo tem uma configuração completamente diferente desta que nos ensinaram? As leis físico-químicas todas que aprendemos cairiam por terra. É mais ou menos isso que sinto em relação a essa economia oficial, apoiada em dogmas discutíveis como “a possibilidade da existência de um equilíbrio numa economia caracterizada pela propriedade privada” ou então o mais fatídico “cada um cuida de si que a mão invisível do mercado cuida de todos”.

Mas que equilíbrio é esse?Esses economistas de mentalidade mecanicista que acreditam que a economia funciona como os corpos da mecânica deveriam é ser mais coerentes com o seu “cientificismo” e levar em conta aquela lei da Termodinâmica que diz que “num sistema isolado a tendência espontânea é a desorganização, o aumento da entropia, da desordem...”

Esse curso que fiz não é um curso, é um fetiche. Certos casais só têm uma relação sexual satisfatória quando um dos parceiros apela para um fetichismo qualquer. Para uma relação sexual “normal” não haveria a necessidade do marido, por exemplo, colocar “aquelas meias”, mas para ele há a necessidade imperiosa daquele elemento.

Num mercado de trabalho normal, não contaminado, não haveria necessidade de se incluir um curso como esse que fiz. É apenas um fetiche. Mas na vida dita prática torna-se imprescindível.

Estou aqui ultimando o meu currículo para ver ser arrumo uma colocação numa multinacional de celulose, mas que madeira é essa? De onde, como, em que condições essa madeira é extraída?... Não será melhor não fazer perguntas?

Sim, vejo que poderei utilizar meus conhecimentos aprendidos no curso de pós-graduação precoce: de como ter diante de si inúmeras perguntas e mesmo assim se controlar e não fazer nenhuma... Estamos catedráticos nesta matéria!

É a mim que eles estão buscando! O homem certo no lugar certo! Objetivo? Maximizar os lucros! Meios? Não me diz respeito...

É. Pena que eu ainda seja um principiante. Com essa crise vai chover emails pra lá. E tem gente com muito mais cursos fetichistas do que eu! Essa concorrência não é perfeita!...

Mas vamos mandar o currículo assim mesmo para ver que bicho vai dar, me pegar.

Vou enviar um email polpudo, enfatizando os cursos todos que fiz, as línguas que falo, escrevo ou leio, os estágios que fiz (será que serve o de caixa da Lojas Americanas?), com carinho especial pelo curso da Academia Brasileira de Números.

Se depois de uma batelada de emails enviados aos mais recônditos estabelecimentos, não obtiver nenhuma “colocação”, só me restará apelar para aquele velho projeto da construção de um apiário no pequeno sítio do cunhado. Assim poderei extrair mais-valia de alguém (no caso as abelhas) sem a menor culpa, explorá-las até a última gota de mel.

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson, lendo o seu conto sob o prisma da autobiografia ficcionalizada, fico imaginando o quanto esses dilemas profissionais/existenciais devem ter provocado em você grande angústia. Felizmente, o seu interesse por arte e pela escrita deu-lhe asas para escapar de Euler e encontrar equações, de vida, mais interessantes e novas transversalidades.
    Abraços.Gina

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