sábado, 20 de junho de 2009

O Alpinista - Um Conto




O Alpinista

“... Ou será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel.

Mostra os vales onde jorra o leite e o mel

E esses vales são de Deus.”

Chico Buarque/Edu Lobo – Sobre todas as coisas.


A Victor Gíudice, gigante do conto brasileiro, nos ombros de quem subi para enxergar melhor.


Você diz que a minha beleza, que se esvai, escapa de mim agora como água no torvelinho do ralo, foi um karma na minha vida. Como posso acreditar nisso? Está certo, eu entrei na empresa porque, além de tudo o mais, era atleta, jogava bem futebol e eles estavam interessados em dinamizar o time com uma injeção de talento. A empresa não ganhava há um bom tempo um campeonato amador desses. Você pode argumentar que havia candidatos melhores preteridos, mas eu precisava de uma colocação e a beleza do meu porte físico ajudou... Como seria um karma então? Não! Não é porque estou doente agora, vendo meu corpo acanhar-se, tornar-se franzino que vou deixar-me levar pelos seus apelos. Se nunca acreditei em Deus como é que vou acreditar agora, quando Ele faz isso comigo? Você quer levar-me para um lugar estranho, diz que lá eu terei, verei provas mais concretas de que há algo maior do que esse mundo aqui... Já sei, eu estou exagerando, não são provas concretas (é uma ironia minha),mas são manifestações fortes que são como fumaça que podem entrar pelas minhas narinas adentro, mostrando-me o fogo, ou melhor, insinuando. Você falou que sou grosso, mas eu também tenho as minhas leituras. Não cuidei só do corpo não: “Mens sana in corpore sano”. Eu nunca deixei de prestar atenção a isso. Sempre procurei equilibrar os poderes do corpo e do espírito. Bom senso. Nem de um lado nem do outro. Não pense você que eu fui protegido lá na empresa: só recebi uma ajudazinha no começo. Eu fiz todos os cursos que me ofereceram! Esforcei-me. O que aconteceu comigo foi certo azar fatal. Sempre tomei cuidado com tudo e tive sorte, aprendendo a ver as duas faces da moeda, um lado ou outro das questões. Quem se apega a convicções é porque no fundo não pensa, é bobo! Eu sempre vi longe! Eu fui treinado para isso. Muito bem treinado, aliás. Eu era imbatível em simpósios, seminários, congressos onde nossos interesses eram representados. No que dependesse de mim os nossos produtos não ficariam sem mercado.

Quando fui convidado para participar do Curso de Expressão Oral, a principio estranhei a técnica, causou-me certo mal-estar. Afinal não é fácil ter de defender um ponto de vista no qual a gente não acredita. Mas depois as dificuldades foram sendo desmistificadas: vamos percebendo o charme discreto da outra face. É só ter imaginação e talento! A primeira fase do curso estruturava-se em perguntas propostas pelo Mestre, à queima-roupa, imprevisivelmente, que deveriam ter respostas categóricas: Sim ou Não! Caso sim, teríamos de explicar o porquê. Mas depois teríamos de defender o não! (E vice-versa!) Quando me perguntaram no curso se eu era a favor da legalização do aborto, logo disse que não e expliquei o porquê: eu acho que desde o início da concepção já há uma vida em formação. Quando foi instigado pelo Mestre a defender o aborto, arrepiei-me (Não era religioso, mas essa idéia sempre me repugnou). Não tinha passado pela experiência com nenhuma namorada, mas logo veio, para meu alívio, a lembrança de milhões de abortos clandestinos em péssimas condições que são feitos por aí e que sendo assim, dado que ocorrem, tem de acontecer nas condições melhores possíveis. Essa lembrança ajudou-me a cumprir a missão a mim confiada: colorir o sim com todos os requintes que a argumentação criativa pode amealhar. Arrematei o libelo com a idéia de que o feto em seus primórdios não deve ser encarado como um ser humano.

Quando o mestre perguntou-me se eu era a favor da pena de morte eu disse rápido que não. Expliquei logo que além da questão dos direitos humanos consagrados, há o fato de que violência sempre gera violência seja de que instituição for: os marginais de alta periculosidade, por exemplo, cometeriam atrocidades ainda maiores se tivessem convicção de que se fossem presos, fariam o pior com eles: a morte. O Mestre olhou-me com expressão suavemente irônica e logo atendi ao seu chamado: Defenda o sim! A situação agrediu-me no início, fez-me salivar num tom desconfortavelmente acre, mas ao ouvir minha voz, pronunciando aquelas palavras a favor da pena de morte (... “Porque esses marginais não irão aprender nunca, não serão intimidados e ainda consumirão recursos públicos quando presos.”), eu senti um frêmito de êxtase e dor”. Êxtase por sentir que a platéia (ainda que simulada por alunos) se deixava acalentar pelo meu veemente discurso, encarando-me com expressões de efusivas admirações; dor porque um lado kitsh meu, sentimental, ainda insistia que as coisas não eram bem assim.

Ao dizer em primeira instância que o homossexualismo era uma doença, explicando as razões (para mim óbvias) logo já imaginava como seria difícil dizer, justificar o contrário: “Não, é uma relação como outra qualquer. Essa associação de pênis acoplando-se, como dádiva da natureza, unicamente à vagina, é mecânica, superficial, não é necessariamente a única possibilidade, é uma imposição cultural.” A platéia caiu na gargalhada. O som estrepitoso ecoou pela sala. Ainda bem que todos ali conheciam minhas façanhas no futebol (Nunca tive medo de levar e dar caneladas). As minhas namoradas eram invejadas, senão pensariam que eu era viado, dado a eficácia as minhas ponderações.

Foi só o Alberto ter explicado por que era a favor da universalização do cumprimento russo com beijo na boca, eu fui à forra: ele tingiu-se de vermelho, os olhos pesavam, com vontade de cair no chão em vez de encarar uma platéia de ar maroto que se comprazia com risos ainda mais obscenos. Janaina também teve a sua cota: explicar porque acreditava que Nelson Rodrigues tinha razão ao vaticinar que “toda mulher gosta de apanhar, com exceção das neuróticas”, não foi fácil, principalmente logo depois de ter dito que isso era uma bobagem inventada e divulgada por cabeças estreitas e machistas, para justificar uma opressão milenar. O osso mais duro de roer, entretanto, foi o do Tarcísio: teve de explicar por que a mulher pode também ter amantes como o homem. Ao ponderar inicialmente que o homem tem apetites sexuais mais fortes do que a mulher, que ele trai por necessidade digamos fisiológica e que a mulher quando trai é por sentimento, não imaginava a dificuldade que seria ter de desdizer tudo depois. Estou vendo a cara de bobo dele, envergonhado: “A mulher e o homem devem ter os mesmos direitos em todos os planos. O resto é imposição social”. O Mestre o advertiu com razão que apesar do discurso guardar uma lógica interessante, o rosto e seus matizes de emoções o desmentiam. Como Hamlet ressaltou aos atores que se apresentariam para o rei e a rainha em Hamlet: há que se aliar, adequar falas, ações e gestos. Expressão facial e falas trabalhadas em uníssimo! A convicção tinha de ser passada nos dois planos: seria inócuo (ou até mesmo perigoso) um discurso competente, mas sem arrojo, empáfia.

Sérgio é que não se adaptou mesmo bem ao jogo, como eu esperava. Estava sendo uma surpresa para mim que ele tivesse se desempenhado até aquele certo momento com eficácia. Mas pelos antecedentes (não percebia, por exemplo, que o que o nosso ex-chefe fazia era para o nosso bem: os produtos não podiam perder clientela importante só porque, temporariamente, apresentavam um grau elevado de pequenos defeitos de acabamento) eu já pressentia que seria difícil para ele “pegar o espírito da coisa” num crescendo harmonioso e belo. Justificar que o casamento tanto pode ser indissolúvel como descartável (se for vontade dos cônjuges), que o mercado tanto pode ditar todos os preços como ser ignorado, com o Estado tendo um controle férreo sobre a economia, que as crianças tanto podem receber educação sexual dos pais e na escola básica como devem descobrir “isso” quando “ganharem o mundo”, que deve haver censura às manifestações artísticas ou que toda censura a uma obra artística é injustificável, que todo homem tem seu preço ou nem todos, ... até que ele conseguiu. Mas quando o Mestre perguntou se ele acreditava que Deus existe, ele respondeu nervoso que sim: falou da natureza, da vida como uma obra de arte, que só se explica, se justifica com a ação de um criador e não do acaso. O nervosismo do discurso, feito com uma emoção tímida era fruto do que já o esperava para depois. Um silêncio contagiou a todos quando o Mestre conclamou-lhe a justificar o contrário. Todos esperaram com certo frisson que ele iniciasse o segundo tempo. O ar tornou-se rarefeito para as respirações ofegantes. O silêncio se renovou, opressivo. Podia-se ouvir o bater das asas, se moscas lá houvesse. Sérgio se omitia, recusava-se a defender um ponto de vista ateísta. Que bobo! Era tão fácil! Bastava lembrar as misérias que grassam por aí (há séculos!), a morte de crianças inocentes, para argumentar que não existe nenhuma entidade tão poderosa assim. Ele quebrou o silêncio dizendo que não admitia, era um ultraje, ter de trabalhar, polir essa face da moeda. O Mestre, obviamente, tomou aquilo como uma ofensa e eliminou-o do curso, pedindo-lhe que se retirasse da sala para continuarem os trabalhos, o que Sérgio não fez, sem dirigir antes palavras ásperas, amargas e insolentes ao Mestre. Contra-atacou que o curso era uma pomposa tolice, que se aquilo fosse um curso de teatro poderia ter algum sentido o jogo perverso de simulação ao buscar entender as razões de uns personagens e seus diferentes pontos de vista, suas motivações, uma busca inspirada pela generosidade e não por um insidioso maquiavelismo. Diante de colegas estupefatos ele não se intimidou na sua pregação. Insistiu que, infelizmente, nós não estávamos ali para entender as razões do outro, por mais “torpes” que fossem, que não estava mais interessado em participar daquele mau teatro vestindo um personagem com sacrifício da própria identidade, que deveríamos era aprender a sermos nós mesmos, mais convincentes, mas nós mesmos. Acrescentou ainda que o curso deveria ensinar-nos a reforçar as convicções que tivéssemos e não a nos dividirmos, espatifarmos. O mestre não suportou tamanha cantilena sub-humanista, démodée e expulsou-o da sala. O idiota poderia ter ficado apenas sem mais um curso no currículo como seqüela, mantendo o emprego. Preferiu ainda hostilizar um pouco mais o Mestre, afrontando-nos como agravante. “De tanto espatifados ali no curso, tornar-se-ão todos uns patifes” – gracejou. A aula foi interrompida, o Mestre tratou de pedir seu desligamento da empresa. Sérgio tinha um protetor poderoso, mas o curso do Mestre era muito importante e como este ameaçou não mais dar aulas, o rapaz atrevido teve de sair da empresa e procurar alguma atividade compatível com seu anarquismo porque ali não era talhado para a liderança, o avanço veloz na carreira. A princípio achei estranho o Mestre ganhar “a parada” porque poderia ser substituído apesar de considerarem sua importância pedagógica. Mais tarde descobri, com meus altos contactos, que tinha um protetor mais forte (ele não era nada bobo mesmo, pena que tenha morrido de câncer recentemente).

Na aula seguinte o mestre perguntou-me se acreditava em discos voadores e eu tirei de letra o jogo do sim ou não. Afinal esse nosso mundo não só é tão grande que pode conter milhões de planetas como o nosso ou mais avançados (ou menos atrasados), com seres em estágios bem mais evoluídos como também é meio ridículo acreditar noutro ser que não tenha olhos, boca, ouvidos como nós e que nos visite: só no cinema, televisão e nestes livros desvairados. Quando ele, no entanto, me perguntou se eu era a favor da democracia eu logo senti a malícia, a batata quente que tinha em mãos. Logo agora que isto estava consolidado no país, com presidentes eleitos pelo voto direto depois de uma longa ditadura, como eu poderia dizer que não acreditava em democracia? Suei frio. Se ao dizer que sim lembrei-me da idéia de que democracia é regime político cheio de problemas “mas é melhor que todos os outros” é porque de certa forma já preparava o terreno para o que teria de dizer depois.

No segundo round franzi a testa com mais sentimento e lembrei-me da noção de que “não existe multidão inteligente” e expressei-a. Minhas leituras são insistentes mas tenho de dividi-las com os cuidados com meu preparo físico mas sabia que isto vinha do grande dramaturgo e poderia desvirtuar um pouco a máxima num outro contexto. Acrescentei que a democracia era perigosa porque poderia consagrar a vontade da mediocridade da maioria. Uma idéia cintilou na minha mente e lancei-a em meu auxilio: o nazismo tinha sido um fenômeno democrático! A platéia ficou embasbacada. Eles não esperavam que eu pudesse argumentar com essa força. É obvio que o discurso tinha pontos fracos, mas minha máscara facial, o meu jeito particular de olhar, com firmeza, determinação, os meus esgares, o sorriso sibilino e desafiador, as mãos agitando-se desafiantes, tudo se mesclavam de forma a tornar pertinentes a audácia do meu discurso. Assim naquele momento, diante daquela platéia estupefata, tomada, possuída pela minha inteligência eu senti que poderia defender qualquer idéia, que eu tinha talento inesgotável para apreensão das ambigüidades dessa vida e o que era melhor: lucrar com isso!

No espaço de tempo entre as aulas (que eram nas tardes das terças e quintas) passei a sentir que de certa forma já não precisava do Mestre. Em casa mesmo, diante do espelho inteiriço do banheiro, algumas vezes para ganhar mais auto-estima com o talhe esbelto do corpo, eu ensaiava minhas expressões, propondo-me temas polêmicos (e outros não tão polêmicos assim, mas que eu tornava complicado e virava do avesso, ao fazer o advogado do diabo). Assim parte do meu rosto explicava-me porque os padres devem se casar, parte insistia que deviam ser celibatários. Um lado de mim dizia que o calor é muito mais agradável que o frio, outro lado dizia justamente o contrário. O olho esquerdo vibrava com o significado do Natal, o olho direito argumentava que era puro comércio. A mão esquerda agitava-se criticando golpes militares enquanto a direita, histérica, os defendia. Insisti tanto nestes exercícios solitários que me vi até questionando se mamãe tinha sido boa para mim ou uma autêntica megera. Quando me vi tomado de amor e ódio por ela, expressos ambos de forma impressionantemente convincentes, cansei-me dos exercícios, resolvi parar e conformei-me em esperar pelas novas aulas, mesmo porque a platéia me instigava mais a dar uma forma mais compacta, uniforme às expressões do meu rosto. O espelho mostrava-me um ser dividido (ou era impressão minha?). Impressão ou não acabei por concluir que o trabalho de direção do Mestre era insubstituível, inalienável e que eu não poderia ser um discípulo ingrato.

Na semana seguinte o mestre introduziu um elemento complicador na natureza do processo: teríamos de responder a perguntas da platéia. Dizer que o roubo de um pão por um faminto é um crime porque senão aonde é que o mundo vai parar e logo depois afirmar “primeiro comer, depois a moral”, que a dignidade é um luxo que os famintos não podem se dar, que escandaloso mesmo é morrer de fome, enfim, dar o dito por não dito é fácil; difícil é ter de responder se eu deixaria um filho meu morrer de fome caso estivesse desempregadíssimo, quando eu tinha acabado de dizer que em hipótese alguma o roubo (do que quer que fosse) teria circunstância em que seria perdoável. Disse que sim com rispidez cadavérica e tratei logo de repetir o que já havia dito antes com ligeiras mudanças, caprichando na carranca irredutível, acrescentando de novo apenas que era uma questão de princípios. Os bobos não deram conta dos sinônimos introduzidos e se deixavam impressionar pela minha fascinante máscara facial. Esta segunda etapa do curso foi aguda, mas repleta de prazerosos desafios. Gente que até então tinha se desempenhado com galhardia agora se atrapalhava. Ter de dizer que salário mínimo é adequado (logo depois de tê-lo tachado de criminosos) e depois responder o que compraria com ele, se viveria com aquilo, convenhamos, não é fácil. Ainda bem que não me deparei mais com questões melindrosas como essa. Teve gente que sim e passou vexame. Numa nova fase do processo, depois que muita gente se queimou, o Mestre restringiu-se a me dirigir apenas questões em que o sim e o não, não comprometem, denotando simplesmente um estilo de vida (“O uso excessivo de cartões de crédito é recomendável?”). Depois de várias performances bem resolvidas, exposições bem engendradas, senti que o Mestre já estava bastante satisfeito comigo e não iria mais me desgastar.Havia entendido que de longe eu era o mais apto a sobreviver diante das intempéries imprevisíveis e mutantes, que eu já absorvera com louvor as lições. Iria deixar-me como exemplo, protótipo. Questões mais espinhosas passou a direcionar aos outros. Ele saboreava os desatinos dos desajeitados, olhava-me com olhar sóbrio e cúmplice, sugerindo que eu não me acomodasse, que eu aprendesse com os erros que estavam sendo cometidos aos borbotões. Essa bandeira branca hasteada pelo Mestre encaixou-se com uma divina providência naquele momento em que meu espírito já estava atingindo certo cansaço e enfado de tanto jogar. Se tal não acontecesse, eu já tinha planejado dizer sim de primeira caso achasse não (e vice-versa), porque na segunda vez que se defendia um ponto de vista é que as feras estavam mais atentas, afiadas. Com a abertura a novas questões da platéia, Fernanda como que percebendo esse protecionismo do Mestre na reta final, tratou de complicar questões não muito difíceis que me foram colocadas. Ao dizer com precisão como uma novela de televisão é uma arrematada bobagem, uma perda de tempo, “um coração de mãe em que cabe qualquer coisa”, “um gênero sem nenhum caráter” depois de ter dito que era um produto cultural de maior relevância na sociedade moderna, um folhetim eletrônico, um gênero que Machado de Assis invejaria se fosse vivo pela quantidade de consumidores, tive de explicar para uma indócil Fernanda porque se acabava de dizer que novela é uma coisa chata, desinteressante, como é que já tinha sido flagrado num intervalo entre aulas, curioso em saber o que aconteceu no “capítulo de ontem?” De fato Fernanda tinha razão. Eu realmente tinha perguntado sim o que havia acontecido (afinal castraram ou não castraram o personagem? Se não estava castrado como é que não percebeu?). Gozado, veja você, agora depois de tantos golpes eu entendo melhor a personagem (Não tenho também coragem de olhar para o meu corpo), mas na época não entendia. Mas Fernanda estava agindo de má fé. Estava trazendo elementos da minha realidade para o nosso universo de ficção que estávamos vivendo ali, no nosso lúdico jogo do sim ou não, sem meios termos, sem matizes, sem muros, o preto no branco! Senti vontade de me socorrer com o Mestre e denunciá-la como alguém que estava subvertendo nossas regras, agindo sem ética, apelando. Afinal ela tinha que se comportar como se o mundo exterior não existisse e sim apenas os nossos interesses ali no jogo, que se resumiam no seguinte: vender bem uma idéia. Ela teria que se ater, ser fiel ao meu último discurso, que era contra as novelas: Tudo o que disse antes teria de ser esquecido como dito por mim. (Afinal segundos atrás tinha manifestado apreço às novelas como produto cultural nobre). As idéias poderiam retornar como mísseis, quem lançou não. Achei melhor, entretanto, não incomodar o Mestre. Senti pelo seu olhar inquieto, sinais de reprovação, insatisfação com a travessura de menina, mas apreendi que ele continuava do meu lado. Encarei-o de forma doce, agradecido pela solidariedade e transmiti-lhe a segurança de que saberia lidar com esse contratempo com “savoir-faire” e preferi uma malícia mais refinada: “Estar interessado no que aconteceu com um produto não dá idéia da qualidade, da estima que temos por ele. O ser humano tem as suas fraquezas. Um acidente de trânsito atrai muitos curiosos. Nem por isso é um espetáculo, um bom produto”. O Mestre me ouviu com um dissimulado, tímido encantamento. A platéia estava com um “Bravo!” entalado nas gargantas. Senti então que as habilidades que estava exercitando me seriam muito úteis. Já não me preocupava com tremedeiras, não gaguejava, olhava para os olhos de todos sem o menor vestígio de intimidação. Se papai e mamãe estivessem ali sentados na minha frente na primeira fila, não faria a menor diferença. Diante de mim havia somente uma massa indistinta, disforme, pronta, disponível para receber os raios que de mim emanavam, grata pelo brilho da inteligência transbordante que podiam contemplar.

Na terceira fase do curso aprendemos a lidar com o material a ser apresentado, como distribuí-lo em tópicos especiais dispostos em ítens de um Power Point atraente. Cada tela deve ter as palavras, as frases e os desenhos chaves para que não esqueçamos nada, para servir como balizador, pontuação do discurso que devemos ter ensaiado na ponta da língua. Na realidade elas que estão ali supostamente para elucidar a platéia, estão ali mesmo é como guias imprescindíveis para os expositores. À platéia não convém muito didatismo porque senão serão capazes de fazer perguntas delicadas. Se estas surgirão de qualquer jeito porque provocá-las e tê-las em maior quantidade? Afinal as telas existem, mas não para transmitirem verdades transparentes (Afinal quem as conhece com transparência? Não me venha você dizer que sabe...).

Uma dica essencial nos foi passada. No início de qualquer apresentação de um trabalho deveríamos introduzir um comentário de impacto que faria a platéia se deter na nossa persona (o ser magnético e magnetizante), à espera de que nós surgisse outra manifestação de espirituosidade. Escolhido um tema final para cada um, fizemos nossas apresentações de encerramento do curso. Os tópicos iniciais foram os mais curiosos. Um dos alunos, que discorria sobre a importância dos extintores de incêndio, começou a palestra gritando “Fogo, Fogo”. Nós os alunos, ainda que esperássemos alguma coisa do gênero, nos assustamos, Alguns se levantaram esbaforidos, assustados. O palestrante nos tranqüilizou dizendo que era uma brincadeira, ainda que o que teria a dizer fosse fogo!... O Mestre, entretanto, o advertiu que o bom humor era importante, mas que ele deveria ter o cuidado para trabalhar a adesão e a expectativa da platéia e não inocular-lhe certa raiva, ainda que em dose branda ou temporária, fruto de um espírito bonachão e imprudente.

Tendo de apresentar o tema “A Importância dos Cursos de Expressão Oral” simplesmente comecei dizendo que mostraria a eles que caso não fizesse uma boa palestra ainda assim (e por isso mesmo) estaria, por via-tranversa, enfatizando a importância desses cursos. A platéia riu em uníssimo. Captaram a sutileza da colocação. Temia que não entendessem. Senti-me então como Bob Hope divertindo as tropas americanas na segunda guerra mundial.

O Mestre havia escolhido um tema para cada pupilo. Senti que o tema que ele me deu era uma forma óbvia de enaltecê-lo. Eu preferiria ter falado sobre o tema de Janaína: “A Importância da Embalagem de um Produto” ou então, o tema de Tarcísio: “A Importância das Pesquisas de Mercado”. O tema do Alberto eu não invejei não: “A Importância de ser Prudente” (Era abstrato demais, o Mestre escolheu assim porque não gostava nada ele).

Tudo bem.Aceitei com estoicismo esse jogo final. Sou muito grato a ele pelo aprendizado, pelas lições de arrojo e decisão.

Você não pode me acusar que minha escalada na empresa só tenha vingado por uma questão de aparência: fiz aquele curso e outros mais. Você não imagina as coisas que tive de aprender. Acompanhei o processo de fabricação do nosso produto em todos os estágios. É claro que eu não poderia entender todos esses processos, mas meu gerente me estimulou a ter uma boa idéia geral para passar credibilidade, verossimilhança aos clientes, nem que eu tivesse que inventar uma fase ou outra. Sabendo uma três ou quatro as outras viriam por analogia e quem é saberia se eram reais mesmo ou não? O importante era que eu utilizasse os jargões adequados, apropriados aos processos, de um jeito tal que a profusão de significantes desse a entender que subjazem significados em maior nível ainda, inapreensíveis para os leigos.

Logo que me vi alçado a uma boa chefia de vendas e não só dirigia o trabalho de vários vendedores, organizava cursos e aulas da área como também me apresentava em seminários sobre a nossa empresa, sua política, seus produtos, o mercado interno, o mercado externo (atrair novos capitais para os nossos investimentos e mostrar que nossos produtos “não eram uma carroça” era vital), olhei para trás, lembrando do que já passara, lamentei os que ficaram no meio do caminho ou desceram ribanceira abaixo, afugentei certo sentimento incômodo de culpa inerente à vertigem da solidão do poder e conclui que fiz por merecer. É claro que nesta situação privilegiada eu não poderia continuar com esses namoros sem maiores conseqüências. Fernanda trabalhava comigo (eu era o seu chefe) e apesar de me irritar com seu ar coquete, petulante, desafiador, competitivo, sempre descobrindo minhas falhas, ressaltando-as, fazendo caixa de ressonância dos meus erros para os chefes superiores, eu gostava da danada.

Onde começava e terminava a vontade de seduzir e eliminar uma concorrente em potencial que me ameaçava o cargo, o tesão que sentia por ela, a vontade de dar logo satisfação aos chefes, cansado (senão seria tido como viado enrustido), a vontade de ter uma vida mais calma, dedicada ao lar, aos exercícios na academia e à ascensão funcional , o desejo de ser admirado porque estaria casado com a pessoa mais linda do andar (e quiçá da empresa), a vontade de ter logo um filho para poder dar sentido maior ao império que queria construir, o anseio de poder ser convidado para as festas em família dos superiores com um status maior de homem sério (casado), o desejo, a curiosidade e vontade de ter uma mulher só cuidando de mim todos os dias sem as habituais dissipações, a inveja da felicidade aparente ou não de Tarcísio e Janaína, agora juntos e que apesar de estarem em cargos modestíssimos sempre que me viam, transmitiam-me um ar de superioridade diante da minha óbvia aparência de homem solitário, de certa forma carente... E outros desejos, vontades e curiosidades, eu não sei... E quem saberia distinguir esses planos que se superpõem? Você pode argumentar que eu não falei de amor nestes itens todos; mas para mim amor era a integração, interação desses pontos todos. Se na época eu não me importava com essas indefinições, não me venha com esse olhar induzir-me a crer que a compreensão desses limites tem agora algum significado para mim...

O fato é que Fernanda e eu nos casamos com tudo que tínhamos direito: padrinhos, madrinhas, igreja ornamentada com apuro, palavras sagradas, música sacra eloqüentes, pais e mães comovidos e presença de pessoas convenientemente interessantes. A princípio desejei e planejei a ausência de pessoas indesejáveis, depois mudei de idéia: era importante que participassem desse meu rito de passagem para sentirem a quantas andava o meu prestígio e poder. Nossa lua-de-mel teve que ser curta porque viagens de trabalho inadiáveis e cabais estavam programadas. Era formidável ter uma pessoa esperta como Fernanda ao meu lado para corrigir, polir, lapidar, acrescentar detalhes às imperfeições que obviamente minhas apresentações tinham. Diante de mim não havia apenas clientes já cativos ou potenciais, havia também concorrentes de empresas do ramo, sequiosos de me ver embaraçado com alguma questão delicada. O que me aborrecia às vezes era notar que Fernanda mais do que me ajudar aproveitava essas oportunidades para mostrar que ela apesar de ser uma funcionária subalterna, tinha laivos de originalidade e perspicácia tão admiráveis quanto o chefe. Quando a pressionava no hotel contra os fatos dizia que era impressão minha, que simplesmente não podíamos correr o risco de não passar uma mensagem com segurança e brilhantismo, que estava a serviço do produto. E se de início me via incomodado, depois acreditava no que ela contrapunha (ou fingia acreditar).

Minha relação com Fernanda era complicada como todas as relações, mas com alguns espinhos adicionais, não usuais e não adianta você me olhar com essa cara de quem descobriu meu calcanhar de Aquiles, eu mesmo reconheço: não era uma relação fácil. Mas eu era feliz com ela e mesmo que você continue me olhando assim eu continuarei repetindo isso (Como não éramos felizes se tínhamos tudo que planejávamos?). Não é porque eu descobri depois que ela era amante de Alberto que a experiência que tivemos juntos se esvazia. Fomos felizes sim e se você me desafiar a dizer o que é felicidade eu vou ter mil formas de definí-la que vão rechaçar todas as restrições que você me fizer. Se errei em alguma coisa foi em deixá-la um pouco solta demais, independente. Deveria ter lhe cortado um pouco mais às asas para que voasse só dentro dos meus domínios, da redoma do meu interesse. O apartamento que compramos quem decorou foi ela, não dei palpites e acabei gostando: predominavam os tons brancos e pretos: cores definidas. Está certo que mesmo fazendo os meus exercícios (não os negligenciava), mantendo meu físico atraente, havia épocas em que não tinha muito tesão e outras em que quem estava fria era ela. Mas não tenho dúvida de que na nossa vida estava presente o desejo, a paixão, o carinho, a vontade, a amizade e as coisas práticas da vida: o desfrute das ofertas, a compra calculada dos móveis, mobílias, cortinas, eletrodomésticos, o cuidado com as agendas ( a lembrança mútua dos compromissos de cada um) e até mesmo uma vida social não intensa, mas significativa (não havia nenhuma reunião importante com figuras chaves em que não dávamos um jeito de sermos convidados). Até mesmo recebíamos alguns amigos em casa, a despeito do olho gordo com que pudessem nos envolver. Confesso que neste ponto sou um tanto supersticioso, mas até mesmo os invejosos Tarcísio e Janaína convidamos para mostrar a todos que pairávamos acima das mesquinharias.

Como você vê, todos os ingredientes para uma vida estável e feliz estavam presentes: por que não seríamos felizes? É claro que eu não podia precisar a importância e a força de cada elemento desses na nossa relação. Se o sexo era mais forte que o amor, se os dois se confundiam, se o amor era sobrepujado por uma paixão teimosa, se os cuidados com a casa e a eficiência no trabalho eram excessivos e tomavam um tempo que poderia ter sido nosso, se desejávamos estar juntos mais por razões materiais do que espirituais, se ao casarmos aproveitamos oportunidades boas que nos foram oferecidas ou fomos oportunistas... Quem é que pode destrinchar, entender, aquilatar a relevância desses valores individuais na minha vida modelo? Não há testes estatísticos para isso! É um risco que todos correm e eu sempre quis muito viver, sempre quis ser o primeiro em tudo que fazia, nunca quis ser coadjuvante da vida alheia e não tinha, portanto, tempo a perder com filosofias e psicologias baratas. Em alguns momentos poderia até dar a impressão de que estava conformado, apaziguado com o que já tinha alcançado, mas era só uma parada estratégica para observar os flancos livres por onde atacar e eles sabiam disto na empresa: eles reconhecem quando tem um ser especial, devotado ao trabalho, à perseverança, destinado a vencer, na frente deles.

Ao ser convidado para o jogo de pôquer rotineiro com alguns chefes de departamento da empresa, incluindo também diretores próximos e íntimos da alta cúpula, não pestanejei: ali era um lugar natural meu que tinha de ser a mim oferecido. Não me olhe com essa cara não, esse convite caiu do céu: veio do reconhecimento do meu valor, da minha gana, ainda mais depois da missão delicada que cumpri com todo profissionalismo, sem deixar máculas que pudessem um dia melindrar o nome da empresa. Nosso melhor fornecedor de matérias-primas estava namorando outra empresa disposta a pagar bem mais que a gente e a diminuição da nossa cota, a procura de fornecedores não tão confiáveis, com eficiência bem menor, nos causaria transtornos. Apesar dessa área não ser muito afim, o fato é que fui convidado a realizar um trabalho de embaixador. Recebi algumas instruções do meu chefe imediato que por sua vez recebeu instruções até hoje não sei de quem: o resto seria conseqüência do meu talento, aprendizado, criatividade. Não me pergunte como convenci o gerente de vendas deles a continuar no prestigiando com a preferência, a exclusividade. Só posso lhe contar que discorri sobre o futuro da empresa, sua capacidade de superar as crises, o mercado cada vez mais abrangente que conseqüentemente demandaria cada vez mais matérias-primas para a produção inigualável, inimitável do nosso produto final. O resto são artes do ofício. Coisas de iniciados que gente como você com essa cara de asco não vai nunca entender porque deixam a vida estagnar no limbo, na pasmaceira, na obscuridade, a preferirem acrescentar alguns condimentos não ortodoxos em seu dia a dia de trabalho...

Os meus primeiros jogos de pôquer com os colegas da empresa (atente para o termo colegas: eu não me sentia inferior) confesso a você foi um fiasco. Eu tinha um bom treino na arte do blefe, mas o pôquer exige tato, uma inteligência, um cuidado além, um espírito cavalheiresco, aristocrático que eu demorei um pouco a adquirir. Os jogos eram à noite num simpático “living-room” dentro da empresa para desespero e ciúmes de Fernanda que não se conformava em me ter com menos freqüência em casa nem em saber que eu estava tendo acessos sociais com gente especial, que ela não tinha. Quando lhe expliquei que minha ausência era para o nosso bem ela teve acessos de ódio! Só se sossegou com o tempo, uma calma atingida que me provocou estranheza e contentamento. Desvendar esses sentimentos ambíguos me era difícil e eu precisava dar prioridade ao meu aprendizado de pôquer, essa fina combinação de arte, malícia, inteligência, criatividade, signo poderoso que resume a carreira que abracei: alpinista de cargos. É claro que perdi bastante dinheiro no começo, mas para mim era um investimento a fundo perdido. Quando passei a ganhar algumas boladas, meus bons companheiros se surpreenderam: não é que o pirralho aqui também levava jeito para a coisa?

É claro que nossa camaradagem não se esgotaria nos jogos e teríamos de compartilhar outros indícios de grandeza do status adquirido como a companhia de mulheres belas, disponíveis, não complicadas, que tem objetividade e nos exploram com maior pragmatismo, sem subterfúgios. A minha adesão ao grupo dotou-o de um colorido especial. Estas aventuras eram encaradas com bom humor, como um rito sagrado e profano, em que religiosamente nas noites de quarta e sexta feiras (além de sessões extras de fim de semana) teríamos que conhecer as mais apetitosas deusas e seus prazeres secretos que nos seriam revelados e violaríamos (e eu era um semideus que ali surgia para dar caráter ecumênico mais prodigioso). Durante os jogos de pôquer alternávamos os habituais diagnósticos da situação da empresa, a cotação dos diferentes cargos, a cantilena sobre os tédios conjugais e as esposas chatas com os relatos dos prazeres mais recentes descobertos e as habilidades específicas das meninas. Cada uma tinha um conhecimento carnal especial que nós expúnhamos, checávamos, esmiuçávamos, até chegar a uma cotação mais justa para os produtos: estávamos dispostos a pagar o que valessem, mas éramos consumidores exigentes... Com o meu invejável porte atlético (poderia descuidar das coisas domésticas e deixar Fernanda solta com as suas maquinações, mas do físico não me descuidava com a academia) eu atraia muito as mulheres de que daria conta e sobravam algumas para eles obviamente, que tinham que contrabalançar as calvícies, os cabelos brancos, as barrigas proeminentes, as erupções e dobras da pele, os olhares mortiços, o desalinho dos músculos, os sorrisos mecânicos, com muito mais dinheiro do que eu.

Assim, se eu lhes era tão útil em tantos aspectos não consigo entender porque se combinaram para me arruinar deste jeito! Na época eu acreditava que era apenas uma maré de azar, mas hoje tenho certeza que foi fraude de cúmplices o que me fez perder tanto dinheiro no jogo. Não adianta você me olhar com esse jeito piedoso e sarcástico, pois você também se deixaria enredar pelos miseráveis se você tivesse iniciado escalada como eu (o que pelo seu jeito deduzo que nem teria iniciado, se conformaria com a mediocridade da planície...) E não saberia o porquê....Será o medo da concorrência evidente que a minha juventude representava para aquele séqüito senil? Será raiva, a inveja indócil por me verem elegante, sedutor em contraponto à falta de graça deles? Será porque eu já estava possuidor de vários segredinhos contábeis da empresa, que se avolumassem me tornariam mais poderoso e perigoso? Será porque eu fui atrevido e comentei principalmente que com a razoável aposentadoria por doença do Torres, mudanças significativas seriam feitas? Será uma lição que quiseram me dar para que eu aprendesse o ponto certo para descansar? Você também estaria tão confuso quanto eu! Não saberia distinguir falta de sorte, amizade, camaradagem, “spirit de’corpus”, de mafiosidade!

No resto eu não vou entrar em detalhes porque já estou ficando cansado desta história (nem sei porque insisto em contar tudo isso para você). Mas dado que você teve a paciência de me ouvir até aqui, não vou deixar você com água na boca! Sim... porque se eu aprendi alguma coisa nessa vida é que o prazer tem de vir de onde for nem que seja com a desgraça alheia e eu não vou “cortar o seu barato”!

Em resumo, meu balancete doméstico era periculosamente desfavorável, minhas dívidas de jogo, minha gana de trabalhar estava comprometida (já não tinha o mesmo profissionalismo, a mesma força vital). Fernanda, maldita, separou-se de mim, ficou com o apartamento e suas dívidas, que eu não conseguia mais acompanhar, exigindo ainda pensão polpuda para um filho que hoje tenho certeza não é meu: é do Alberto. Quando na época eu joguei isso na cara dela, desconfiado que ela não se restringira à solidão com que a presenteara, disse-me que eu na minha decadência estava indo longe demais no jogo do sim ou não. Minha cabeça fervilhava:

“Sim, era meu filho. Fernanda sempre me amou, teve cuidados com a nossa vida em todos os níveis e compreendia que tudo o que nos atrapalhava eram ossos do ofício necessários para o nosso aprimoramento, a nossa evolução enquanto casal numa sociedade difícil e competitiva. Eu era quem havia quebrado nosso acordo extrapolando os limites”.

“Não, não era meu filho. Fernanda nunca gostou de mim, só tinha cuidados comigo porque tirava frutos disso e não acreditava nem um pouco que ganharia alguma coisa com os meus progressos, dado que já me enfadava dela e pressentia que eu gostaria de ter outra mulher mais atenciosa, carinhosa e menos arisca, mais resignada com a vida que eu quisesse lhe dar e acompanhasse minha ascensão profissional numa sociedade difícil. Fernanda é que havia quebrado nosso acordo extrapolando os limites.”

Essas idéias azucrinavam-me e por mais que as afastasse possuíam-me com insistência tirânica a se revezarem em moto perpétuo. Foi só quando Fernanda repetiu mais de três vezes a palavra decadência que eu resolvi interromper o jogo e optar pelo sim, esquecendo o não e todas as suas implicações, admitindo a nossa separação no estilo proposto, julgando-a temporária dado que iria me reerguer, cravando a picareta com mais força na pedra.

Ao me olhar de corpo inteiro no espelho generoso do banheiro do apartamento alugado, de um nível mais modesto do que aquele em que Fernanda morava com o filho (e tenho certeza com Alberto em determinadas noites) eu descobri um dado importante que desanuviou-me as angústias: por mais que a minha escalada houvesse sido sabotada e estivesse sofrendo com os abalos, com as pedras que rolavam, meu corpo ainda faria a delícia de muita gente. Quando percebi que havia empregado a palavra gente e que ela poderia significar tanto homem como mulher eu intui uma idéia redentora: porque não me modernizar, diversificando minhas atividades para aumentar meu capital? Eu não estava mesmo acostumado, treinado a enxergar o avesso das coisas, porque não entender esse outro lado da vida também?

Não me olhe com essa cara irônica, sem vergonha. Nunca ninguém me comeu não! Eu sempre fui homem na cama, muito macho se você quer saber, com homens ou mulheres. Fazia o que eles queriam, dentro de certas restrições. Bastava me pagarem bem como você o fez que eu os satisfazia, por que não? Cuidados com essa doença que grassa por aí eu sempre tomei, desde que dela ouvi rumores. Tenho certeza. Sim, eu sempre fui muito escrupuloso, calculava bem o que podia e o que não podia ser feito e como... Você me olha com essa cara assim? Por que?... Não, eu nem sempre fui cuidadoso, principalmente antes quando não ouvia falar desses casos todos... Mas porque eu tenho que me justificar diante de você? Está certo, você me usou, pagou bem, voltou outras vezes, descobriu que estou assim, veio me visitar e agora me diz todas essas coisas de elevação espiritual, karma, etc e tal ... De que me adianta saber disso agora? O que vai resolver? Só vai ajudar você na sua piedade por mim! ... Sim,você está interessado é em você mesmo, sente um vazio por dentro, quer preenchê-lo com meu sacrifício e eu tenho até pena de você por eu poder logo me safar desta e você ainda ficar por aqui nesta zona! Você não me engana, é como todos! Precisa de dinheiro até para os prazeres mais elementares, inventou todas essas histórias de que pode me mostrar a fumaça onde o fogo divino arde, que eu posso sentí-la pelas narinas, que é só eu lhe acompanhar para me sentir inebriado com a neblina ... Que piada!

Você não se altera e continua me olhando com essa cara de yogui? Por que?... Não, me desculpe! Você é um cara legal, se me pagou, comprou-me é porque tem as suas carências, as suas angústias temporárias. Deve saber de coisas que eu não sei que precisaria aprender e que no mínimo poderiam me dar alguma paz de espírito! Seria ótimo sentir essa fumaça sagrada e imaginar, deduzir que onde há fumaça há fogo, que Deus é um fogo...

Ah! Sua cara agora se altera!... Mas não meu chapa, eu apenas quis mostrar a você que ainda sou bom no jogo do sim ou não, que eu posso ainda enxergar as duas faces da moeda!... Mas porque esse silêncio? Não está percebendo que estou agredindo você?... Sim, por que não vai embora e me deixa sozinho...? Você está doido para deitar na cabeceira da minha cama e formar mais uma imagem da Pietá comigo, mas não vou lhe dar essa felicidade!

Ah! Você está indo embora mesmo? ... Não por favor, volte! Você precisa me provocar, me treinar! Faça algumas perguntas pra o sim ou para o não! Eu prometo responder seriamente! Não pense que me agrada enxergar a vida em branco e preto, vendo as coisas cinzentas. Será que você é capaz de me fazer ver as cores que nunca vislumbrei? Vamos, use todo o seu poder de argumentação, eu já não estou em condições de sair daqui: o fogo e a fumaça terão de emanar de você!... Você sorri como se de certa forma já estivesse vitorioso, mas eu não respondi ainda o sim ou o não!... Porque essa cara?

O que você quis dizer com essa história de vales onde jorra o leite e o mel? Saiba que eu nunca gostei de vales. Gosto de cumes, de picos...

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Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Adorei, Nelson!
    Comentando sobre o termo "coquete", referenciei o seu texto, indicando-o.
    Parabéns, um excelente dia e sucesso!

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